"O místico
é o homem que se cala
para não ofender
o pudor do silêncio”
António Ramos Rosa
O nosso lugar neste mundo é sempre um ponto de passagem, um espaço-entre, uma linha de fronteira: entre o nascimento e a morte, entre as trevas e a luz, entre a eternidade e o tempo, entre o saber e o não-saber, entre a palavra e o silêncio, entre a plenitude e o nada, entre o finito e o infinito, entre o possível e o impossível, entre o encanto e o desencantamento, entre deus e a sua ausência. Somos permanentemente migrantes e romeiros num chão que nos foge dos pés quando nele procuramos um porto de abrigo. Aspiramos à luz da verdade, ao sossego da consciência, construímos certezas, mas também acendemos dúvidas, e assim nos vamos perdendo e encontrando no mistério da existência: nem “ao lado de deus”, nem “do lado de deus”, talvez apenas e sempre “entre os dois lados”, cujo princípio desconhecemos e cujo fim ignoramos.
Foram muitos os caminhos que percorri ao longo de sessenta e sete anos, desde que bebi a fé com o leite materno até à serenidade com que me aproximo do fim, com muitas interrogações, mas sempre arrimado à esperança de que, quando se habita entre a escuridão e a luz, é possível vislumbrar alguma claridade feita da mistura entre o que humanamente somos e o que humanamente, sempre humanamente, nos transcende, peregrino que sou na terra dos homens, migrante na nostalgia de deus, de que cedo aprendi o nome, mas também de que ainda jovem senti o mistério do seu silêncio e da sua presença ausente.
Tem sido uma vida intensa entre a teologia, a filosofia, o teatro e a poesia, jogando sempre com a força das palavras, mas confrontando-me diariamente com os seus limites, ou seja, habitando também aí o espaço-entre da nossa potência e da nossa impotência. E mais não tenho feito do que inscrever no que sou e no que faço esse espaço-entre.
Comecei por ouvir o que os profetas, os apóstolos e os teólogos disseram sobre deus e aninhei-me no seu regaço. Aproximei-me também das mitologias e das suas iconografias, de tantos povos e culturas, e fascinei-me com as suas formas e as suas cores. Estudei depois o que pensaram os filósofos, sempre com estas perguntas no mais fundo de mim mesmo e no horizonte do meu ser: de que falamos quando falamos de deus? O que tem o deus de Abraão, de Isaac e de Jacob a ver com o deus de Tomás de Aquino ou de Descartes? O que há de comum entre o deus de Mestre Eckhart ou de Nicolau de Cusa e o deus de Espinosa ou de Hegel? Porque tem o mesmo nome aquilo ou aquele a que os místicos chamam deus e aquilo ou o conceito que os metafísicos traduzem com a mesma palavra? E o que tem a ver o “deus da incerta ignorância” de António Ramos Rosa, aquele que ele “ignora mas deseja”, “para estar nele como uma folha de silêncio ou de água”, com o deus das grandes basílicas e das imponentes catedrais, ou o deus dos densos tratados que arduamente demonstram a sua existência e a sua natureza? E mergulhei também profundamente no “silêncio de Buda”, no vazio cheio de plenitude das místicas orientais. Tantas formas de dizer deus… tantos modos de o nomear e de o pensar… tantos silêncios em que o calar… De uns a outros, um espaço infinito, um espaço-entre, ou talvez apenas, quem sabe, “este curto espaço entre nós e a morte”, em que “tão mal gastamos nossa longa despedida!” (Victor Matos e Sá).
Como filósofo, como poeta, como encenador e como ator aprendi que o espaço que habito e em que vou caminhando, na migração das ideias e dos atos, dos gestos e das palavras, da agitação e da calma, é um espaço quase sem espaço e um tempo quase sem tempo, como o são os espaços e os tempos da mediação: estamos, mas ainda não estamos; somos, mas ainda não somos; vemos, mas ainda não vemos; mostramo-nos, mas continuamos sempre ocultos, escondidos. Talvez por isso me tenham impressionado e ressoado dentro de mim, de uma maneira muito particular, as palavras com que António Damásio abre o 1º capítulo, intitulado “Um passo para a luz”, do livro O sentimento de si, dedicado ao mistério da consciência: “Sempre me intrigou o momento de penetrar na luz, o momento preciso em que, sentados no meio do público, vemos abrir a porta do palco e um intérprete entra na zona de luz; ou, observando este acontecimento na perspetiva do intérprete, o momento preciso em que aguarda na obscuridade, vê a mesma porta abrir-se e avança para dentro da luz que ilumina palco e público.” A nossa morada, a morada de que se faz a nossa inquietação e o nosso desassossego, mas também a nossa serenidade, não é o espaço dos bastidores, em que tranquilamente nos vestimos e caracterizamos, nem é definitivamente o espaço do palco, em que nos movimentamos e exprimimos, conscientes de que estamos a ser olhados no fingimento do que somos e não somos. A nossa morada mais autêntica e ao mesmo tempo mais crítica é esse espaço-entre, o espaço que medeia os bastidores e o palco, a penumbra localizada entre uma luz e outra luz, o tempo de espera que é já de ação, o momento da energia contraída que, prestes a expandir-se, é o movimento puro dentro do repouso, a palavra feita ainda silêncio, o inefável de tudo o que pode ser dito, o invisível na presença ausente da sua visibilidade.
Este conceito de espaço-entre corresponde à noção bastante abrangente e plural de Ma em japonês: 間. Com uma multiplicidade de sentidos, Ma significa um espaço não ocupado, o vazio, mas também pode significar o silêncio ou a pausa entre duas atividades, a margem na pintura ou o vão entre duas construções. Também Yohaku 余白, que significa o “espaço branco ressoante” e que pode designar a margem que circunda uma página escrita, comporta um sentido idêntico (estando na base da Arte da Ressonância de Lee Ufan). Esta noção subjaz igualmente, em grande medida, ao que poderíamos designar com a expressão inglesa In-between space ou com a expressão alemã Dazwischen. Em todos estes casos somos remetidos para a noção de mediação e ao mesmo tempo de incompletude, de um vazio que não é um nada, mas que vibra com a pulsão do que nele está latente, de uma distância que se habita como distância, de uma finitude que se prolonga por fora de si, de um interior que invade o exterior e de um exterior que impregna de algum modo o interior, como se um se derramasse no outro, de uma imanência que reclama a transcendência e de uma transcendência que nasce do interior da própria imanência. Assim, Ma, Yohaku, In-between space, Dazwischen ou Espaço-entresignificam a morada dinâmica do migrante, quer se entenda o migrante em termos geográficos, quer se entenda em termos linguísticos, quer se entenda no terreno do pensamento e das ideias ou mesmo no campo da arte ou da religião, na medida em que há algo de misterioso, algo de “quase-sagrado” que se respira, se inspira e se expira, nesses espaços de mediação.
Olhando para o meu percurso ao longo de mais de seis décadas de errância no mundo da vida, das ideias e das artes, reconheço que, afinal, sem o saber e o designar assim, me tenho movimentado sempre pelos espaços e pelos tempos do Ma, do Yohaku, do In-between, do Dazwischen, do Entre. Se foi a sensação de Ma e de Yohaku que me levou a entrar para o seminário com dez anos e a iniciar-me aí nos estudos teológicos, terá sido também a sua inscrição em mim que me inspirou uma tese de doutoramento sobre Nicolau de Cusa, filósofo e místico do século XV, que com o conceito de “douta ignorância” cunhou o modo como habitamos a fronteira do saber com o não saber, quer quando nos referimos às coisas do mundo, quer quando pensamos nas coisas divinas, comparando a nossa relação com a verdade a um polígono inscrito num círculo: por mais que multipliquemos os seus lados nunca esta figura coincidirá com o círculo, a não ser que se resolva no próprio círculo, assim perdendo a sua identidade de polígono. Foi também com este filósofo que aprendi o pensamento dos pseudo-herméticos, segundo o qual deus é uma esfera infinita, cujo centro está em toda a parte e cuja circunferência não está em parte alguma, levando-me a suspeitar que o humano espaço do divino corresponde aos ínfimos e infinitos espaços que o polígono nunca consegue absorver no seu processo de aproximação do círculo. Foi igualmente a necessidade de me projetar para o Ma, para o Yohaku, para o In-between que me fez apaixonar pelo tema da multiculturalidade e encontrar no diálogo intercultural e nas suas dinâmicas de mestiçagem a forma humana de viver a consciência da finitude na sua projeção para o encontro com a diferença, esse “em branco” ressoante sempre a preencher e nunca preenchido. Mas é também o Ma o e o Yohaku que alimentam a minha atividade teatral, vivida como uma forma de tornar visível o que é invisível, sem que, com isso, o invisível perca a sua invisibilidade, como quem está sempre a um passo de “entrar na luz”, porque é a sua misteriosa energia que abre o nosso olhar, e melhor é saber que o invisível é um tesouro infinito que infinitamente alimenta o nosso desejo, do que transformá-lo num tesouro finito que, saciando o nosso desejo, o mataria no seu movimento desiderativo. E é ainda isso a que chamo o entre-vazio, o entre-espaço e o entre-tempo, a consciência da margem como o que medeia a minha mais profunda interioridade e o meu completo enraizamento no mundo e na natureza, que me faz exprimir poeticamente as imagens do que me rodeia: escutando-as, através dos meus olhos ou dos olhos dos meus outros, numa partilhada experiência estética do mundo, traduzo o que me dizem em versos que mais não são do que a expressão da plenitude misteriosa do silêncio. E é, afinal, por me saber entre, e, sabendo-me entre, por ter consciência do meu ser relação, que sou amor e amo, não como quem procura ardentemente o que lhe falta, mas como quem se derrama discretamente sobre os outros na sua riqueza e na sua alteridade.
Pulsará algo, a que possamos chamar deus, em todos estes espaços-entre que habito e que me habitam? Não estando “ao lado dele”, nem “do lado dele”, mas talvez apenas “entre os seus lados”, ou sendo dele romeiro e migrante, diria que é possível que deus mais não seja que a ressonância de todas as vozes, nossas e do mundo, no silêncio que as alimenta, em que circulam e a que regressam. Pura e simples cintilação no nada que somos. Encosto-me assim aos místicos, porque o místico, como diz António Ramos Rosa, “é o homem que se cala para não ofender o pudor do silêncio”.
Paradela da Cortiça, setembro de 2021
João Maria André est né en 1954 à Monte Real, au Portugal. Docteur en philosophie, il a dédié sa thèse à Nicolas de Cues. Enseignant enphilosophie, culture etthéâtre, il est également l'auteur de Renaissance et modernité : du pouvoir de la magie à la magie du pouvoir(1987), Sens, symbolisme et interprétation dans le discours philosophique de Nicolas de Cues (1997), Pensée et affectivité (1999), Dialogue interculturel, utopie et métissage à l'heure de la mondialisation (2005), Multiculturalisme, identités et métissage : Dialogue interculturel dans les idées, la politique, les arts et la religion (2012), Jeu, corps et théâtre : l'art de faire l'amour avec le temps (2017) et Docte ignorance, langage et dialogue : le pouvoir et les limites de la parole chez Nicolas de Cues (2019). A côté de l'enseignement et de la recherche, il a développé une intense activité culturelle (traduction, dramaturgie et mise en scène) au sein de la Coopérative Bonifrates de Coimbra et au Teatro Académico de Gil Vicente (il en a été le directeur de 2001 à 2005). En poésie, il a publié Rostos suspensos et Estilhaços em poemas. Au théâtre, il a également publiéO filho pródigo, coécrit avec Helder Wasterlain (2008), et Peregrinações (2010). En 2021, avec les dessins de Pedro Pousada, il a publié Doze proposições sobre livros, leitura e hospitalidade.